O Governo parece ter dado uma grande ajuda ao lóbi do sector farmacêutico com a recente alteração dos regimes de comparticipações de medicamentos, com reflexos no preço final a pagar pelos utentes. Desde há anos que decorre esta "guerra" entre governos diversos e o poderoso lóbi farmacêutico. Trata-se de um sector oligopolista, que investe fortemente no marketing. As suas acções de propaganda são, em geral, mais sofisticadas que as dos governos. Diversos governos, conscientes de um forte desequilíbrio entre produtor/consumidor favorável aos sector empresarial, abriram frentes de luta pela introdução dos medicamentos genéricos e pela redução de preços finais (ou das comparticipações do Estado) à custa da redução das elevadas margens de lucro do sector. As empresas encaixariam bem esta redução, mas sabem que têm vantagem em dificultar o processo desde o seu início. Por exemplo: no caso da venda de alguns medicamentos fora das farmácias (o que permitiria introduzir alguma concorrência) têm feito uma intensa propaganda da ideia de que essa venda é perigosa. No caso dos genéricos, a ideia divulgada foi semelhante, e obteve mesmo algum apoio da Ordem dos Médicos. Ora as recentes decisões governativas vieram proporcionar à indústria farmacêutica alguns trunfos adicionais, que esta não irá desperdiçar, como se vê nesta notícia do jornal Público. Dominando as contas - e seleccionando judiciosamente os exemplos - a Associação Nacional de Farmácias (ANF) "prova" que os consumidores vão ser imensamente prejudicados. Estamos agora a assistir a uma guerra das percentagens como não se via, talvez, desde o final dos anos 70, quando sindicatos e governo usavam indistintamente (conforme as conveniências) os diferentes indicadores da inflação (homóloga, média) e confundiam subidas percentuais com subidas de pontos percentuais. No caso dos medicamentos genéricos, o governo anulou uma comparticipação acrescida de 10%, que fora criada para fomentar o uso dos genéricos, divulgando que o aumento de preços será apenas de 4%. A ANF contrapõe: «o corte de 10% na majoração significa que todos os medicamentos genéricos estão hoje 10% mais caros» e «Os doentes têm o direito de saber que esta alteração lhes vai custar mais 30 %», «um utente do regime especial (doentes crónicos e pensionistas) pode chegar a desembolsar o triplo por um genérico». Também é referida pela ANF a existência de casos em que os genéricos poderão ficar mais caros do que os correspondentes de marca. Confuso? Esclareça-se que o valor de 4% adiantado pelo governo para aumento de preços, resulta de uma conta simplista: (a) os genéricos aumentam 10%; (b) os restantes diminuem 6%, a suportar pela indústria; (c) logo: 10% - 6% = 4%. Muito simples. Mas não é assim tão simples: há que contar com a diferente ponderação dos diferentes tipos de medicamentos e outras alterações legisladas, território em que a ANF manobra com destreza. Veja-se por exemplo este seu argumento: «388 medicamentos em 500 perderam as comparticipações a 100%, o que significa que milhares e milhares de doentes crónicos, que não pagavam nada, passaram agora a pagar importâncias que lhes fazem falta.» Demagogia em estado puro, mas certamente com alguma eficácia. Outro argumento (e trunfo) dos farmacêuticos é o de que as subidas de preços vigoram de imediato, enquanto que as descidas só se farão sentir após as reposições de stocks: diz a ANF que «milhares de doentes se sentiram 'ludibriados' porque pensavam que a partir da passada 5ª-feira teriam medicamentos mais baratos nas famácias.» Mais um aspecto em que o governo foi inábil, pois poderia ter feito coincidir ambos os efeitos; neste caso, o impacto da subida impressiona mais, enquanto que as descidas se farão talvez ao longo de algum tempo, sem impacto mediático. O fulgor argumentativo da ANF pode ser verificado na sua página: «O Governo anunciou um abaixamento de 6% no preço dos medicamentos comparticipados (...) O que não disse foi que os laboratórios seriam os menos penalizados (...) Se a lei fosse cumprida, os medicamentos em Portugal não seriam dos mais caros da Europa e os portugueses pagariam menos 220 milhões de euros por ano.» Na página Direcção-Geral da Saúde nada consta sobre o assunto e uma pesquisa sobre "preços dos medicamentos" não fornece nada. A opinião pública é muito sensível ao custo dos medicamentos e facilmente mobilizável contra as empresas farmacêuticas, o que tem jogado a favor das medidas governativas. Mas as pessoas são igualmente sensíveis aos aumentos dos preços, o que abre caminho às campanhas das farmácias. Com estas recentes medidas, atendendo à confusão instalada, atendendo à dificuldade do governo em se fazer explicar (agora é que tinha calhado bem um daqueles encartes que só aparecem em períodos pré-eleitorais) e atendendo à facilidade do sector farmacêutico em publicitar as suas posições, o pêndulo ameaça deslocar-se a favor deste sector. Notícias sobre o mesmo assunto em: Diário de Notícias e Correio da Manhã. Documentos relacionados: |
terça-feira, setembro 20, 2005
Medicamentos: a guerra das percentagens
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário