quarta-feira, agosto 03, 2005

Financiamento do desenvolvimento

«Em Portugal, a elevação do nível de vida pode conseguir-se mediante a aplicação de todos os recursos disponíveis em investimentos reprodutivos; mas também poderia conseguir-se, por exemplo, pela supressão de uma parte da população (então não há tanto "desemprego oculto", na agricultura sobretudo?), ou pela defesa legal do aborto (e deixaria de nos atormentar o problema de encontrar ocupação para mais de 40 000 jovens em idade de trabalhar, em cada ano...). Todavia, entre nós, não se aceitam estas duas últimas políticas de aumento do bem-estar, aliás extremamente lógicas, científicas e, quanto à última, de aceitação corrente em países estrangeiros considerados civilizados (a Índia, o Japão, o mundo anglo-saxónico, etc.). Poderá então aceitar-se uma política de industrialização que signifique para extensas camadas da população a estabilidade na miséria?, e a vida em condições infra-humanas ainda durante muitos anos mais?

Se o processo de industrialização comportasse, no nosso país, a escolha de uma das alternativas enunciadas, a resposta, em face da concepção cristã do homem e da sociedade, seria um não enérgico e definitivo.

Felizmente, parece possível prosseguir simultaneamente um programa acelerado de investimentos reprodutivos e um processo de elevação do nível de vida das classes mais pobres, pois existem os recursos, bastando não deixar que se mantenham estagnados nas mãos dos seus detentores, ou que se destruam sob as formas de consumos de luxo e de investimentos sem qualquer justificação social.
(...)
Se considerarmos a muito desigual repartição do rendimento compreenderemos porque razão não são tão baixas como poderiam parecer as disponibilidades de capitais; mais ainda, é esta desigualdade que está na origem dos dispêndios escandalosos em automóveis e festas, em vestuários e viagens, etc. ... tudo representando recursos reprodutivos que poderiam ser dirigidos para outras utilizações com manifesta vantagem para a colectividade.
(...)
Ora sucede que em Portugal a tendência para investir é muito limitada por parte dos particulares, por falta de espírito de empresa, desconfiança do capitalista e exiguidade de mercados; e nem a política de crédito contraria a estagnação dos capitais nem o poder público preenche a sua função supletiva em matéria de tanta gravidade, pondo os mecanismos das finanças do Estado ao serviço do desenvolvimento económico do País. É pela conjugação de todos estes factores que a autêntica escassez de capitais aparece notavelmente agravada, sobretudo naqueles empreendimentos que mais importam para o progresso da nação, ao mesmo tempo que se mantêm parados no sistema bancário, sob a forma de moeda mas constituindo autênticos depósitos de poupança determinados pelo motivo do investimento.

O quadro não melhora muito quando consideramos os investimentos efectivamente realizados: os detentores de capitais orientam-se largamente para a construção de prédios monumentais; e quando colaboram na obra de fomento industrial não hesitam muitas vezes em financiar grandiosos edifícios fabris, decorados com frescos, cerâmicas e ferros forjados (pois "nem só de pão vive o homem"), instalando-lhes dentro mecanismos de qualidade inferior ou em segunda mão, ou ainda, e na melhor das hipóteses, equipamentos modernos destinados a produções supérfluas, planeadas para estratos populacionais de elevados rendimentos, e não para as grandes massas populacionais - essas não têm poder de compra...

Onde estará o economista capaz de condenar o desvio, para a elevação imediata do nível de vida das classes mais pobres do país, de alguns milhões de contos parados nos bancos ou escandalosamente aplicados em consumos de luxo e em investimentos injustificáveis?»
Francisco Pereira de Moura - excertos dum artigo originalmente publicado em "Rumo", Abril de 1955, com o título "Economia e dignidade dos homens"; incluído no livro "Por onde vai a economia portuguesa", de 1969.

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