terça-feira, março 08, 2005

Uma questão civilizacional


O Economist publicou o artigo Old Before Their Time (envelhecidos antes de tempo) que atribui o menor desempenho económico europeu, relativamente ao dos EUA, não a uma menor produtividade do trabalho - no caso de alguns países, é o contrário ! - mas sim ao facto de as regalias sociais (tais como a idade de reforma, pensões, etç) serem mais generosas na Europa. O artigo é de acesso pago, mas está livre (em pdf) aqui. O capítulo I da publicação da OCDE encontra-se aqui.

Tudo isto se baseia num estudo da OCDE, disponível no primeiro número de uma nova publicação desta organização, a Economic Policy Reforms, de periocidade anual, complemento das conhecidas Economic Outlook e Economic Surveys. Sobre este assunto leia-se também o dossiê de imprensa e uma intervenção de Jean-Philippe Cotis.

Como é sabido, os excedentes de produção (relativamente ao nível de subsistência) podem ter dois destinos: ser utilizados para melhoria das condições de vida actuais ("consumo no presente"), ou reinvestidos para obtenção de novos acréscimos de produtividade ("consumo no futuro"). Não existe uma bitola universal para fixar qual a divisão óptima entre estas duas alternativas: cada povo decide como o fazer.

Trata-se, afinal, de encontrar uma solução de equilíbrio entre eficiência e equidade: quando se decide aplicar recursos excedentes em regalias sociais, na redistribuição de rendimentos ou na ampliação de serviços públicos, estão-se a retirar recursos de aplicações alternativas que permitiriam acelerar o crescimento da produtividade. No entanto, nenhum povo do mundo decidiu continuar a trabalhar nas mesmas duras condições dos seus antepassados, tal como nenhum povo decidiu parar com o esforço de investimento e passar a "viver dos rendimentos".

O problema da comparação entre a Europa e os EUA (ou entre estes blocos e a Ásia, por exemplo) surge com grande acuidade porque estas economias competem entre si no mercado global: ganhos de produtividade obtidos à custa do sacrifício de uma política de equidade podem proporcionar vantagens competitivas importantes na economia globalizada.

É sabido como a Europa privilegia, mais do que os EUA, a equidade, a solidariedade e a justiça social, e como os americanos privilegiam, mais do que a Europa, a liberdade individual, a segurança (interna e externa) e a concorrência e competição - entre indivíduos, empresas e países: não é por acaso que parte dos serviços americanos de segurança e espionagem foram convertidos, após a queda do Muro, para a "guerra económica".

O drama é complicado para a Europa pois, como sabemos a propósito da "fronteira de possibilidades de produção", os países que fizerem avançar mais essa fronteira, ainda que à custa de enormes sacrifícios no presente, terão no futuro maior capacidade produtiva que permitirá ter simultaneamente mais competitividade e mais consumo (incluindo o consumo de bens sociais).

Corremos então o risco de nos engalfinharmos com os EUA numa escalada pela produtividade com sacrifício da equidade e exarcebamento das tensões mundiais - tanto mais que esta corrida ainda afastará mais os países desenvolvidos das restantes economias - para já não falar no esgotamento dos recursos e nas agressões climáticas.

Mais do que uma questão puramente económica, esta é uma questão civilizacional, uma opção de modelo de vida - individual e colectiva - e que diz respeito a todos e cada um de nós. Custa-me ver os argumentos economicistas prevalecerem, na mente de certos europeus, sobre o nosso património de ideias. A actuais gerações americanas, com a experiência da deriva hippie, aprenderam o preço que se paga quando abandonamos os nossos valores culturais em troca de "teorias" e "filosofias" exóticas - e valorizam o seu património ideológico. Podem perder um euro mas não perdem a auto-estima. Estaremos nós dispostos a trocar a nossa em troca de um dólar?

A corrida pela excelência na produtividade pode causar muitos males a toda a humanidade - e os termos em que o assunto usualmente tem sido discutido entre nós não me parecem os mais apropriados: com os defensores do modelo americano a designar como "mandriões" e "parasitas" os trabalhadores que defendem as suas regalias e os serviços públicos, e os defensores do modelo europeu a designar como "criminosos" e "exploradores" os do outro lado. Nem esta nossa blogosfera - dotada de gente tão culta - consegue fugir a este radicalismo. O Economist diz que nós os Europeus somos um "exército de pantufas". Também em tempos os ingleses disseram que Portugal andava a "pavimentar as ruas com o ouro da CEE".

Será que os defensores do modelo americano, agora que temos um estudo sério e tanto quanto possível isento, que mostra que é possível aliar elevados níveis de produtividade a elevados níveis de protecção social - e na Europa. caramba, na Europa ! - poderão baixar o tom das suas descabeladas críticas e discutir o assunto como gente educada que certamente são ?

O artigo do Economist deu origem a este comentário de O Insurgente, que reproduz este gráfico, em cujos eixos se medem os desvios relativamente à taxa média de crescimento (Portugal está sobre a média) e o desvio do PNB per capita relativamente aos EUA (Portugal e Grécia com o maior desvio); o Insurgente insinua que gráfico coloca Portugal no "quadrante da miséria": um palavrão para impressionar o pagode, tal como acontece com o "exército de pantufas" e o "envelhecidos antes de tempo": a semântica ao serviço da ideologia.

Como se pode ver com maior detalhe no documento da OCDE, o quadrante inferior esquerdo é os países que "estão atrás dos EUS e não se estão a aproximar": e dele fazem parte países como a Itália, Alemnaha, França, etç, e Portugal também, mas ainda com maior divergência.

Comentários também no New Economiste no Cafe Hayek.

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