quinta-feira, julho 12, 2007

Progressistas regressistas


Manufactura de algodão

     Portugal tem a duvidosa honra de ser expressamente citado em alguns dos clássicos livros da Economia Política, por exemplo nos "Princípios da economia política e tributação" (1817), do sr. David Ricardo: é lá que se exemplifica a teoria das vantagens comparativas no comércio internacional, explicando (com prova matemática e tudo!) porque é que a Inglaterra deveria fabricar textêis ("panos") e Portugal vinho.
     Se do estrito ponto de vista da eficiência económica isto é defensável, do ponto de vista do desenvolvimento deixa muitas dúvidas: Portugal especializar-se-ia numa produção agrícola com pouca incorporação tecnológica, e a Inglaterra num sector que contribuiria poderosamente para a industrialização e explosão da produtividade. Porém, mais de 100 anos antes, este "trato" já tinha ficado acordado no Tratado de Methuen, (de 1703, renovado em 1810), ou "Tratado de Panos e Vinhos". Adam Smith, pelo seu lado, zurziu este tratado (e Portugal) mas por outros motivos: porque ele configurava o tipo de política intervencionista e limitadora da liberdade de comércio que ele abominava.
     Quem não se iludiu com tal conversa foi o Marquês de Pombal, que instalou no país uma série de manufacturas, nalguns casos com sucesso duradouro (indústria vidreira da Marinha Grande) e noutros sem futuro (por exemplo a fábrica de chitas de Vila Nogueira de Azeitão, uma deliberação régia de 1775).
     Curiosa é a atitude dos ilustres académicos portugueses da época, cujo ideário e propostas se encontram disponíveis na excelente reedição dos 5 tomos das "Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa". Muito influenciados pela doutrina fisiocrata, estes académicos avaliavam quase tudo pelos efeitos, positivos ou negativos, que provocava na agricultura. A sua opinião sobre as fábricas foi frequentemente negativa, mesmo quando se apercebiam de que nas terras em que elas se instalavam tudo prosperava, incluindo a agricultura! Acham isto normal?
     Atentemos: Tomás Vila-Nova Portugal, referindo-se em 1791 ao território de Azeitão, em cuja povoação de Vila Nogueira se tinha instalado a fábrica de textêis, começa por reconhecer que há decadência de muitas propriedades agrícolas, mas que é nos "lugares mais próximos à vila, ou Aldeia Nogueira é que estão em estado mais florescente, e têm maior número de fogos e pessoas" e "também a cultura [agricultura] está em melhor estado, quando as terras estão mais próximas à Aldeia Nogueira, em que é maior a povoação [população].
     Vila-Nova Portugal manifesta depois a opinião de que o número de agricultores (304) é insuficiente, porque todos os anos contumam vir de Aveiro 118 homens para trabalhar nos campos, e conclui: "Disto se segue que a sua manufactura é em detrimento da sua cultura” ou seja, a manufactura (textêis e tinturaria) prejudica a agricultura! E acrescenta: “neste estado de cultura a terra não tem outro regresso [rendimento], que não seja o destas manufacturas de chitas, e tinturaria; ainda que os seus salários não sejam uma renda produtiva”. (*)
     Vila-Nova Portugal é hoje um ilustre desconhecido, mas o mesmo não acontece com Domingos Vandelli, autor de numerosos estudos hoje muito citados. Sobre este mesmo problema das dificuldades sentidas na agricultura, Vandelli lista uma serie de causas de abandono dos campos, que hoje conhecemos bem como caracteristicas das economias modernas: "(1) recolhendo-se para as cidades, e principalmente para a corte (2) expatriando-se muitos cada ano por várias causas, entre as quais é a falta de subsistência (3) o Algarve dá muitos marinheiros aos estrangeiros", e finalmente: "(4) as fábricas atraem a si um exorbitante número de cultivadores".
     Mas não observa Vandelli que as fábricas dinamizam a economia das regiões em que se instalam? Claro que sim, mas eis como resolve o problema:

"Não vale relatar-se o exemplo da maior povoação [povoamento], e aumento da agricultura nas vizinhanças de algumas fábricas, estabelecidas neste reino, como nas de vidro da Marinha; e na de Azeitão de chitas; porque se nestas vizinhanças em razão da maior quantidade do dinheiro, que ali circula, há maior povoação, e consumo de comestíveis, e por isso uma agricultura mais florescente: isso sucede com prejuízo dos lugares ou circunvizinhos ou distantes; nos quais se diminui à proporção a agricultura, e a povoação.

     Normalmente atribui-se ao antigo regime, às forças conservadoras, a responsabilidade pelo atraso económico de Portugal. Mas estes académicos estavam (supostamente) na vanguarda do progresso, eram os iluminados, gente culta, lida e viajada, observadores ineressados no desenvolvimento do país, que continuamente escreviam textos a criticar as más técnicas dos trabalhadores, fossem elas a cortar o bacelo ou a empatar o anzol. E afinal eram contra as manufacturas... Que seita!



(*) Em nota de rodapé o editor interpreta esta frase como querendo significar que o rendimento originário das manufacturas constituía uma "fonte precária". Julgo porém que o sentido é outro: a frase reproduz liminarmente a crença fisiocrata de que só a agricultura era "produtiva", pois só ela gerava um excedente, um produto líquido acima do valor dos recursos utilizados na produção.; na visão da fisiocracia o trabalho de manufactura, embora necessário, não era "produtivo".

1 comentário:

Rui Pedro disse...

O cúmulo da delicadeza de David Ricardo foi a atribuição a Portugal de uma vantagem absoluta quer na produção do vinho quer na de "panos"...