quarta-feira, outubro 04, 2006

Solidariedade ou desorçamentação?

«O Governo quer que o Orçamento do Estado deixe de financiar directamente a construção e manutenção das auto-estradas através de transferências correntes para a Estradas de Portugal (EP) e passe antes a entregar, ao longo dos anos, uma compensação à empresa rodoviária a título de pagamento de um serviço. Para financiar os novos investimentos será a empresa pública a recorrer ao crédito, não se agravando, deste modo, a dívida pública.»

Diário de Notícias, 4.Set.2006

Acho que não ouvi bem... Mas então a dívida pública (a real, não um mero indicador estatístico) não se agrava em igual montante, quer o défice seja inscrito no OE ou numa empresa pública? E não é por isso mesmo que, na proposta para uma nova Lei de Finanças Locais, o governo considera que a dívida de empresas municipais deve contar para o endividamento municipal? (*)

Dito de outro modo: os efeitos negativos do endividamento (sobrecarga das gerações futuras, etc.) não são os mesmos, independentemente de onde for inscrita a dívida? Qual é a diferença entre o OE pagar a obra ou pagar uma renda a uma empresa pública?

Há de facto uma diferença, mas que funciona em desfavor da medida proposta: a ocultação do real impacto do endividamento para investimentos aquando da discussão política do Orçamento de Estado na Assembleia da República.. Voila!

Continuando a ler a notícia do DN: «[...] um dos caminhos para garantir essa sustentabilidade [económica e financeira da construção, gestão e manutenção das auto-estradas] é alargar o prazo de pagamento das infra-estruturas para os aproximar do tempo vida das mesmas. Actualmente uma estrada é toda paga no momento da construção, quando o seu usufruto vai prolongar-se por décadas. Ao aproximar o prazo de pagamento do prazo de vida das estradas, em nome da solidariedade inter-geracional que o actual Governo defende ser mais justo, reduz-se o esforço financeiro no curto prazo e alivia-se a factura do Estado.»

Que grande confusão: uma estrada só é paga no momento da construção se não houver financiamento - ou qualquer project finance - que dilua o respectivo encargo ao longo do tempo: não tem nada a ver com o ser OE ou empresa pública. Até mesmo a empresa pública pode, se o quizer e puder, pagar no acto da construção.

Se nos dissessem que o objectivo é ocultar o défice real junto da UE, ainda se aceitava - embora agora tenham de convencer o Eurostat da bondade da manobra - mas deixem-se é de tretas (tais como transformarem o velho princípio do diferimento de encargos com investimentos na "novidade" socialista da "solidariedade inter-geracional").


A ler, de Vítor Bento: A Desorçamentação das Despesas Públicas (ficheiro Word) .
(*) - tal como considera que, para o endividamento das autarquias, devem ser contabilizadas coisas como factorings, leasings e venda de créditos - apesar de o governo (na encarnação Durão/Ferreira Leite) ter vendido créditos fiscais para aliviar cosmeticamente o défice orçamental.

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