terça-feira, novembro 01, 2005

O Terramoto, Voltaire, Rousseau, a Ciência e os Pós-Modernos


As ondas do maremoto de Lisboa propagaram-se também pelo mundo das ideias. (Via DivulgandoBD - clique na imagem)

O Terramoto de Lisboa de 1755, cujos 250 anos se comemoram hoje, teve um impacto importante no mundo das ideias da sua época. Recordemos que se encontravam em confronto duas visões do mundo: dum lado a visão antiga, dogmática, conservadora, imobilista, de base religiosa. Do outro lado os filósofos do iluminismo, revolucionários e críticos da sociedade antiga.

Do lado conservador considerava-se que, em última análise, tudo era governado por vontade divina: se ocorriam catástrofes, fomes e pestes, era por vontade de Deus, para castigar os pecadores e colocar à prova os fiéis. Qualquer Mal seria pequeno em comparação com o Bem divino.

Do lado do iluminismo, já muito influenciado pelo embrionário movimento científico, defendia-se a existência de leis naturais, que era importante compreender. Se havia coisas que corriam mal (pestes, fomes, etç.) havia que procurar as causas e prevenir os males.

À semelhança de um terramoto, a confrontação entre estas duas filosofias e visões do mundo foi acumulando tensões até que explodiu fragorosamente na Revolução Francesa (1789) , com numerosas réplicas nas várias revoluções liberais que ocorreram em diversos países (em Portugal, em 1820).

A Revolução Francesa é assim considerada a fronteira entre o antigo e o novo regime, entre as idades Moderna e Contemporânea - mas a fronteira poderia também localizar-se na data do Terramoto de Lisboa.

O Terramoto aconteceu na manhã do dia 1 de Novembro, dia de Todos os Santos, em que era imperativo ir à missa. E foi dentro das igrejas que se encontravam grande parte das vítimas. Este facto impressionou muito as pessoas na época: se o terramoto era um castigo divino, como é que foi logo atingir os crentes que assistiam à missa, poupando muitos que não tinham lá ido?

Os filósofos iluministas não deixaram de aproveitar os ensinamentos da catástrofe que se tinha abatido sobre uma das mais famosas cidades do mundo. Voltaire escreveu um longo poema dedicado ao Terramoto, onde começa por verberar os "filósofos enganados" que proclamam que "tudo está bem":
«Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos iludidos que bradais "Tudo está bem";
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Escombros, despojos, cinzas desgraçadas,
Estas mulheres e crianças amontoadas
Estes membros dispersos sob mármores quebrados
Cem mil desafortunados que a terra devora
(...)
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
"Deus vingou-se, a morte é o preço dos seus crimes" ?
Que crime, que falta cometeram estas crianças
Sobre o seio materno esmagadas e sangrando?
Lisboa, que já não é, teve ela mais vícios
Que Londres ou Paris, mergulhadas em delícias?
Lisboa em ruínas, e dança-se em Paris.»
(...)

Fonte: Meu Rumo (adaptado)
Mas Voltaire escreveu ainda uma outra obra que reflecte a catástrofe: a divertida novela filosófica "Cândido ou o Optimismo", uma farsa corrosiva, com personagens bastante caricaturais: Cândido, um ingénuo que olha o mundo com a ignorância dos simples; e o filósofo Pangloss, defensor de que tudo está bem no mundo, incluindo as catástrofes, por ser essa a vontade divina; a base dos argumentos de Pangloss são que o mundo foi feito por Deus, e como Deus é perfeito, o mundo também só pode ser perfeito; se as coisas acontecem de determinada maneira, então é porque só podia ser assim e não de outro modo. Logo à entrada da barra de Lisboa, quando Jacques, o benfeitor de Cândido, cai ao mar (ao tentar salvar um marinheiro!) e Cândido o quer socorrer, Pangloss impede-o, "provando-lhe que a enseada de Lisboa fora feita expressamente para o afogar". Segue-se a descrição do terramoto que acontece mal Cândido e Pangloss colocam o pé em terra firme.
«Mal entravam na cidade, chorando a morte do benfeitor, sentem o solo tremer sob os seus pés; o mar, furioso, galga o porto e despedaça os navios que ali se acham ancorados. Turbilhões de chama e cinza cobrem as ruas e praças públicas; as casas desabam; abatem-se os tectos sobre os alicerces; trinta mil habitantesdetodos os sexos e idades são esmagados sob as ruínas. Assobiando e praguejando, dizia consigo o marinheiro: — "Muito há que aproveitar aqui". — "Qual poderá ser a razão suficiente deste fenómeno?" — indagava Pangloss.

"Chegou o fim do mundo!" exclamava Cândido. O marinheiro corre imediatamente para o meio dos destroços, afronta a morte em busca de dinheiro, acha-o, embriaga-se; depois de cozinhar a bebedeira, compra os favores da primeira moça de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas e no meio dos mortos e moribundos. Enquanto isto, Pangloss puxava-o pela manga:
— "Meu amigo — dizia-lhe — isso não está certo, ofendes a razão universal, empregas muito mal o teu tempo."
— "Com os diabos! — respondeu o outro — sou marinheiro e nasci em Batávia; marchei quatro vezes sobre o crucifixo, em quatro viagens que fiz ao Japão; e ainda me vens com a razão universal!" Alguns estilhaços de pedra tinham ferido Cândido, que estava estendido no meio da rua e coberto de destroços.
— "Ai! — dizia ele a Pangloss, arranja-me um pouco de vinho e de óleo, que estou a morrer."
— "Este terramoto não é novidade nenhuma — respondeu Pangloss. — A cidade de Lima experimentou os mesmos tremores de terra no ano passado; iguais causas, iguais efeitos: há com certeza uma corrente subterrânea de enxofre, desde Lima até Lisboa."
— "Nada mais provável — respondeu Cândido — mas, por amor de Deus, arranja-me óleo e vinho."
— "Como, provável? — replicou — Sustento que é a coisa mais demonstrada que existe!"
Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss trouxe-lhe um pouco de água de uma fonte próxima.»
Pangloss, de quem são muito citadas as frases "vivemos no melhor dos mundos" e "tudo está bem e não podia estar melhor", ocupa-se a consolar os desgraçados lisboetas com estas filosofias; no entanto, o seu discurso, escutado por um membro da Inquisição, é interpretada de modo equívoco: se Pangloss crê que tudo está sempre bem, achará então ele que o pecado original também foi uma coisa boa? Pangloss não compreende a subtileza, mas o inquisidor regista o facto, e a imagem do lacaio a servir-lhe vinho do Porto no meio dos destroços é muito sugestiva.
«Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira: "Pois tudo isto — dizia ele — é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar noutra parte. Pois é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem".
Um homenzinho de preto, familiar da Inquisição, que se achava a seu lado, tomou polidamente a palavra e disse:
— Pelos vistos, o Senhor não crê no pecado original; pois se tudo está o melhor possível, então não houve nem queda, nem castigo.
— Peço humildemente perdão a Vossa Excelência — disse Pangloss ainda mais polidamente — pois a queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.
— O Senhor não crê então na liberdade? — perguntou o familiar.
— Vossa Excelência me desculpará — disse Pangloss — a liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta; pois era necessário que fôssemos livres, porque enfim a liberdade determinada...
Pangloss ia ainda no meio da frase, quando o familiar fez um sinal de cabeça para o seu lacaio, que lhe servia vinho do Porto.»
Segue-se o capítulo VI, onde se dá conta de que os sábios da Universidade de Coimbra aconselharam a realização de um auto-de-fé para evitar novo terramoto. Repare-se na ironia da prisão com "apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol". Voltaire explora a aqui a sua convicção de que, levados à letra, os preceitos religiosos condenam os seus próprios defensores. Note-se igualmente a futilidade dos crimes: ter escutado uma conversa, ter retirado a gordura da comida. Resultado: novo terramoto!
«Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer. Tinham, pois, prendido um biscainho que estava convencido de ter casado com a própria comadre, e dois portugueses que, ao comer um frango, lhe tinham retirado a gordura: vieram, depois do almoço, prender o Doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação: foram ambos conduzidos separadamente para apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois vestiram-lhes um sambenito e ornaram-lhes a cabeça com mitras de papel: a mitra e o sambenito de Cândido eram pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras; mas os diabos de Pangloss tinham cauda e garras, e as flamas eram verticais. Assim vestidos, marcharam em procissão, e ouviram um sermão muito patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto cantavam; o biscainho e os dois homens que não tinham querido comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora não fosse esse o costume. No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor."»
Esta questão desencadearia ainda um aceso debate entre Voltaire e Rousseau. Voltaire ataca a filosofia "optimista" representada por Leibniz, Pope et Wolf ("um mundo criado por Deus, organizado pela Providência de tal modo que um Mal necessário, em proporção ínfima, é compensado por um Bem sempre maior") e adopta uma postura pessimista mas não de impotência - o homem é ignorante mas pode e deve lutar por melhorar a sua condição. Rousseau recusa esta perspectiva: recordemos que ele é o autor do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" onde responde negativamente à questão de saber se «o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para melhorar os costumes".

Em Portugal tivemos recentemente um debate entre o sociólogo pós-moderno Boaventura Sousa Santos (BSS) e o cientista António Manuel Baptista (AMB) - veiculado em conferências, entrevistas, artigos de opinião e mesmo em livros - onde foi repescada esta confrontação entre os dois vultos do iluminismo. BSS, no livro que esteve na origem da polémica, "Um discurso sobre as ciências", começa por citar Rousseau e o seu "Discurso" para depois atacar a Ciência - e prometer uma "nova ciência" pós-moderna. Uma manifestação recente deste debate ocorreu no Boletim da Sociedade Brasileira de Física, em Maio passado, com uma carta de AMB e uma resposta de BSS.

O debate filosófico em torno do Terramoto não está assim tão afastado de nós. Por isso, ao ouvir os sinos de Lisboa a comemorar o evento, não perguntemos por quem esses sinos dobram: eles dobram (também) por nós.

Algumas referências:
  • "Candido ou o Optimismo" (vide cap. V, VI e VII)
  • "Poème sur le désastre de Lisbonne"
  • "O Terramoto na blogosgera" (Technorati)
  • "O Terramoto de Lisboa, os judeus e a Inquisição" - Rua da Judiaria
  • "Pequeno Blogue do Grande Terramoto"
  • "Lisboa antes do terramoto" (doc. Word)
  • "Cataclismos e Catástrofes: reflexões acerca das relações entre o sistema político e o sistema mediático" (pdf)
  •