sábado, novembro 05, 2005

Contextualização

João, no Metablog, recusa a ideia de que existam "forças" ou "genes" que constroem o comportamento humano, como lhe parece estar a ser sugerido pela Neuroeconomia, querendo "reduzir o fenómeno da agência humana a algo que pode ser explicado através de conceitos causais, como se este se tratasse de um fenómeno natural". Mais especificamente, acha que "o modelo explicativo das ciências naturais não se aplica às ciências humanas". Tratou-se uma reacção a um post de Tiago Mendes no Mão Invisível. Tiago Mendes respondeu no aforismos e afins, num post que gerou uma sequência de comentários que vale a pena ler.

Eu compreendo as reticências de João perante a deriva mecanicista e reducionista das ciências ditas "naturais", que também fez o seu caminho nas "ciências sociais". Mas o uso de analogias mecanicistas tem sido um instrumento poderoso na formação de conhecimentos, seja para explicar seja para "entender". É certo que também conduz a atitudes arrogantes, de convicção que "já se descobriu tudo", ou quase. Foi assim que se julgou estar perto de dominar a cura das doenças humanas, ou de poder construir cidades perfeitas, ou de acabar para sempre com a inflação e o desemprego, para citar só alguns exemplos de coisas típicas do século passado.

Acontece que a divisão em áreas de conhecimento, mesmo na banda larga das ciências "naturais" e "sociais", é uma simples conveniência que decorre apenas das limitações do observador humano. Não há no mundo leis "naturais" dum lado e "sociais" do outro: trata-se de uma mera convenção humana. Diz-se, por exemplo, que nas ciências sociais as leis são probabilísticas, enquanto que nas ciências naturais são exactas. Mas as leis "exactas" agem sobre corpos, constituídos por partículas que, elas mesmas, possuem comportamentos probabilísticos. A pedra largada do alto da Torre de Pisa pode cair sempre na direcção do centro da terra e a uma dada velocidade, mas não acontece assim com muitas das partículas de que é constituída; neste sentido, a lei da gravidade também é probabilística.

Diz o João que os fenómenos humanos são dependentes do contexto. Sim, mas também todos os outros. O "isolamento" que fazemos de componentes desses fenómenos é apenas um estratagema nosso para lidar com a complexidade. É um truque, mas um truque útil, que nos tem permitido definir relações e prever ocorrências futuras, o que muito nos tem facilitado a vida (e complicado também). Todos os fenómenos são dependentes do contexto, a única diferença para o comportamento humano é existirem questões éticas que tornam mais difícil "dividi-lo em partes" - o que, em alguns casos, significaria dividir o próprio corpo em partes.

Quanto à Neuroeconomia, percebo que a figuração de neurocientistas a olharem para imagens coloridas do interior do cérebro de cobaias humanas enquanto estas desempenham tarefas patetas (olhar para fotografias, jogar cartas, etç.) convoque uma visão ingénua e reducionista, e dê a ideia de que se está, uma vez mais, a tratar o corpo humano como uma máquina. Mas não é caso para tanto.

Em primeiro lugar, temos que afastar o receio de admitir que operações mecânicas simples (ou aparentemente simples) participem em processos mentais complexos, desqualificando-os. Imaginemos que um homem, para salvar o filho que ficou esmagado debaixo de um objecto de peso brutal, exerce uma força muscular que a biologia pensaria ser impossível. Trata-se de um acto de altruísmo, para cuja explicação poderemos recorrer à psicologia ou à mesmo à filosofia. Mas será impossível que um biólogo estude o assunto do ponto de vista do "simples" movimento muscular? Ficará o altruísmo diminuído por causa disso? Segundo o João, não poderíamos estudar o músculo, porque o comportamento humano é dependente do contexto. Mas essa restrição não faz sentido. Pode-se estudar a parte sem ignorar o todo (embora haja sempre o perigo dessa ignorância ocorrer).

A maior parte das teorias económicas assume que do grande caos das intenções individuais nasce um equilíbrio, seja através da maximização de funções de utilidade, seja através de instituições reguladoras (contratos, empresas, agência). O problema é que o grande sistema auto-regulador da economia, tal como é definido por essas teorias, está cheio de falhas: indivíduos que não maximizam a utilidade, de bolhas que explodem, de agentes que não fazem o que supostamente deviam, etç. De acordo com o velho princípio de que "se uma teoria não bate certo com a realidade, muda-se a realidade", as explicações para as inconsistências dessas teorias costumam ser: "há Estado a mais", "há regulação a mais", "há política a mais" - como se tais coisas não fossem, elas próprias, inerentes à actividade humana.

Ora a Neurociência - e a Neuroeconomia subsidiariamente - tem progredido muito na explicação, quer do comportamento do ser humano, quer das inconsistências das teorias existentes. Ou seja: está-se, de certa forma, a negar a possibilidade duma teoria geral do comportamento. Está-se, precisamente, a lidar com o contexto. (Isto é talvez uma grande desilusão para o desejo de "descoberta" de teorias magníficas, redutíveis a fórmulas matemáticas simples e independentes do contexto: o homem ao mesmo nível de Deus; mas parece que não será assim).

Uma das grandes ilusões da humanidade é a de que o comportamento humano é determinado pelo raciocínio. Pura asneira: o coração e o fígado (e tanta coisa mais) passam bem sem o pensamento racional. Aí, entra o teórico diz: bem, vamos designar isso como sistema nervoso simpático, e agora, arrumado isso, tudo o resto é racional. Depois descobre-se que certos sinais de aviso (a visão de um objecto a cair, p.ex.) desencadeiam actos defensivos mesmo antes do cérebro racional ter tido tempo de pensar no assunto. Ou que decisões altruístas - como contribuir para a caridade - são influenciadas pela presença de um desenho de uma cara que nos olha, apesar do cérebro racional saber que é apenas um desenho. O modelo racional treme.

Assim, tem-se vindo a descobrir-se que acontece com o sistema de tomada de decisão o mesmo que com outros sistemas e órgãos humanos: que a sua forma e funcionamento incorporam o processo evolutivo, fazendo coexistir sistemas mais simples (que são idênticos aos de organismos primitivos e menos complexos), com sistemas mais complexos (que são exclusivos de organismos mais complexos). Para além disso, a "atribuição de tarefas" a estes sistemas obedece a um princípio de eficiência: quando a tarefa pode ser desempenhada por um processo simples (mais rápido, menos consumidor de recursos, ainda que menos eficaz) não é realizada por recurso a processos complexos (mais lentos, mais consumistas, ainda que mais eficazes).

A descoberta destes processos e mecanismos não diminui em nada a dignidade do comportamento humano, nem o torna menos livre em termos da capacidade de decisão, individual ou colectiva. Qualquer teoria sobre o comportamento humano nunca poderá passar de uma aproximação, uma visão grosseira da complexidade do fenómeno. O ser humano nunca poderá desenvolver uma teoria para se explicar cabalmente a si próprio. Não pode estar acima da sua própria complexidade. Um motor de explosão a dois tempos, ainda que simples no funcionamento e número de peças, nunca se poderá "explicar" a si próprio. O corpo humano é mais complexo e por isso vai mais longe do que o motor na explicação do seu próprio comportamento, mas está tão próximo de "dominar" a sua complexidade como o motor o está da sua simplicidade.

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