sexta-feira, junho 17, 2005

Cegueira


Existem duas maneiras de encarar os fundos comunitários - ou melhor, as "subvenções comunitárias" para o nosso desenvolvimento -: uma é qualitativa, outra é quantitativa.

Em termos quantitativos discute-se qual o seu montante, o seu peso no PIB, a sua evolução ano a ano, etç. São contas fáceis de fazer, não revelam muito mas enchem o olho; poder-se-ia dizer que, deste ponto de vista, "é fácil, é barato e dá milhões".

Em termos qualitativos discute-se (ou dever-se-ia discutir) o resultado efectivo em termos do objectivo pretendido. Foram os fundos bem aplicados, não apenas em meros termos de legalidade administrativa e orçamental, mas sobretudo em função do objectivo prosseguido ?

Trata-se de uma análise de 'custo de oportunidade', mais difícil de fazer. Porque estes fundos, em última análise, não são puramente oferecidos: também aqui ocorre uma contabilidade de partidas duplas, ainda que os respectivos lançamentos não sejam reduzidos a escrito; cada euro que recebemos da União arrasta consigo um débito moral e ético: nós recebemos aquele dinheiro para desenvolver a nossa economia com uma rapidez tal que nos aproximemos da tal média europeia; outro débito criado é o compromisso de, em circunstâncias simétricas, contribuirmos para os membros da União ainda menos desenvolvidos que nós.

As comemorações dos 20 anos da nossa adesão à CEE/União Europeia deveriam ter aberto espaço para a avaliação da utilização das ajudas, mas não: o noticiarismo oficial e oficioso e o comentarismo marialva (não vi outro) limitou-se à leitura "política" (ou seja, aos rituais) da adesão; até mesmo protagonistas como Êrnani Lopes divertiram-se a contar factos anedóticos das negociações, e por aí fora. Mário Soares questionou-se a si próprio porque é que estaria tão sisudo na cerimónia dos Jerónimos. Sendo uma vitória sua, devia ter estado delirante, mas estava de trombas. Motivo: a política interna da altura (leia-se: Cavaco Silva).

Quanto ao resultado dos 20 anos de adesão, nenhuma reflexão. As doutas análises saltavam do anedotário da pré-adesão para o trauma e angústias das negas ao Tratado, ficando o miolo envolto numa neblina que ninguém ousa dissipar.

A actual discussão do quadro orçamental para 2007/2013 deveria ser igualmente motivo de reflexão sobre os efectivos resultados da aplicação dos fundos. Mas os portugas não querem saber disso: querem é saber quanto mais ouro vai continuar a vir do novo Brasil. E eis o que se lê nos jornais de hoje: Sócrates está prestes a obter uma vitória, se conseguir que a inevitável redução das ajudinhas seja inferior a 15 % (ontem já descera para 17 %).

Sendo assim, entende o país (os políticos, os jornalistas, os comentadores) que "já nos safámos". Eis pois o retrato da nossa hipocrisia, da nossa cobardia: continuem a mandar os carcanhóis, que quanto ao resto faremos tudo o que for preciso: marcamos referendos, aprovamos referendos, chumbamos referendos, adiamos referendos, não importa o quê. Sem o "ordenadito" europeu é que não podemos passar.

Foi referido como um dos erros de Álvaro Cunhal o seu prognóstico de que a adesão à CEE seria a ruína da nossa economia. Não estou tão certo desse "erro". Foi também dito que estava cego. Mas não é pior cego que aquele que não quer ver ?

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