quarta-feira, dezembro 08, 2004

Apocalíptica


André Abrantes Amaral escreveu n' O Observador:
«O que temos actualmente é um Estado que tudo dirige e praticamente tudo controla»
Não sei se se refere especificamente a Portugal mas, supondo que sim, não concordo. Tal como não concordo que «o Estado, pensa por nós, decide por nós e sobre o que é nosso.»

Todas as sociedades fazem uma escolha entre aquilo que reservam para o domínio das decisões individuais e o que transferem para mecanismos de decisão colectiva. Porém, desde que se começou a verificar o acentuado acréscimo de produtividade, particularmente desde a Revolução Industrial, que as nossas sociedades têm vindo a experimentar diversas combinações de divisão entre os domínios público e privado, com a fronteira a oscilar entre um e outro extremo. O facto de os dados deste problema sofrerem modificações constantes (veja-se a perturbação provocada pela criação da Internet, por exemplo) não ajuda a consolidar as soluções pontualmente encontradas.

Não concordo que, no caso português, «tudo isto conduz a uma enorme paragem da sociedade. A uma estagnação que nos damos conta todos os dias.» O país tem progredido muito nas últimas décadas, tanto em termos materiais como imateriais. Quem duvida que consulte os dados disponibilizados pelo estudo A Situação Social em Portugal -1960-1999, de António Barreto.

As perturbações políticas são saudáveis, sinal de vitalidade e não do contrário. Agora fala-se dos "políticos incompetentes", mas esse é um discurso recorrente. Para quem acreditasse nestes diagnósticos, então o país esteve sempre "parado", sempre a "regredir", sempre "em crise", com os salários reais "sempre a descer" - tudo coisas que os dados não confirmam.

O nosso "grande problema", actualmente, não é o de estarmos a regredir, mas sim a não progredir tanto como os países que nos servem de referência - particularmente a famigerada "média europeia". Nesse caso, trata-se de uma regressão relativa, e só assim se pode entender a afirmação de que "estamos a ficar mais pobres": sim, mas apenas em termos relativos e apenas em relação a um conjunto de países de referência.

É certo que em Portugal se depende muito do Estado e que se atiram as culpas de tudo o que corre mal para cima do Estado - uma forma de desresponsabilização colectiva. Isto é um problema pelo desperdício de recursos que provoca. Ineficiências que poderiam ter soluções simples arrastam-se em processos burocráticos, potenciando a corrupção. Mas isso não significa que os problemas não se resolvam: as soluções são é relativamente ineficientes. Isso talvez explique o tal "atraso relativo", particularmente chocante por coexistir com importantes ajudas financeiras recebidas da União Europeia.

Será que o Estado «dirige a educação, subsidiando-a e não dando qualquer espaço à livre iniciativa para o surgimento de um diferente modo de ensino» ? Não é verdade. Há liberdade de ensino privado e este existe. Quanto à qualidade, é outra coisa, mas parece que nem a do público nem a do privado se recomendam.

Será que o Estado «controla a saúde, levando a que apenas os ricos, com fortes recursos possam ter acesso a um sistema que não o estatal» ? Não é verdade. O recurso à medicina privada (por exemplo nas consultas médicas) está bastante espalhado, sendo financiado depois por um estranho sistema de comparticipações, quer nas empresas quer na função pública.

Será que o Estado nos aprisiona «a um sistema de segurança social caduco, falido e sem o mínimo de possibilidade em garantir o nosso futuro» ? Isto também não é verdade. O sistema tem funcionado e os reflexos estão no acréscimo de esperança de vida. Também aqui há quem proponha que os sistemas privados complementem os públicos, mas não a extinção destes.

O debate sobre a localização da fronteira entre público e privado tem actualidade, mas exige adequada ponderação. Com os "defensores do Estado" a designarem o sector privado como exploradores e os "defensores dos privados" a chamarem ladrão ao Estado, não vamos longe.

As frases que citei (espero não lhes ter alterado o sentido) configuram uma visão apocalíptica que não tem apoio na evidência nem nos dados estatísticos. Mas está na moda - como sempre estiveram as profecias catastrofistas.

Sem comentários: