sábado, novembro 13, 2004
O esquizofrénico livro do Professor Cavaco Silva
Em 1976, recém chegado da Universidade de York (Inglaterra) onde se doutorara, Aníbal Cavaco Silva publicou o livro Política Orçamental e Estabilização Económica, obra básica de estudo da cadeira de Economia Pública, do ISE, dirigida pelo Professor, com Manuela Ferreira Leite como assistente.
Era um bom livro de estudo, essencialmente keynesiano, basicamente instrumental, com desenvolvimento matemático dos diversos multiplicadores para formulação de políticas orçamentais de estabilização.
Cavaco Silva passou depois para a Universidade Nova (nas suas memórias explica que aceitou o convite que lhe dirigiram porque Económicas, na sequência da Revolução de Abril, já não servia para ensinar Economia) e o livro, com desenvolvimentos importantes, conheceu nova edição em 1982, agora com o título de Finanças Públicas e Política Macroeconómica. Uma nova edição surgiu em 1992, com uma importante inovação: a adição de um novo capítulo da autoria do Professor João César das Neves. É nesta colaboração que reside a esquizofrenia deste livro.
Afinal, não é este mesmo João César das Neves aquele que diz que a divisão da teoria entre micro e macro é enganadora, preferindo por isso a designação de “teoria da economia agregada”? O que faz então o Professor da Universidade Católica num livro keynesiano, num livro sobre macroeconomia?
Eis uma explicação possível: o livro de Cavaco Silva é bom e é útil mas, como é sabido, o keynesianismo caiu em “desgraça”, pelo menos no discurso oficial e académico. Governos de todo o mundo continuam a aplicar as políticas de “sintonia fina”, mas o discurso público emigrou para outras paragens. O paradoxo desta situação revela-se em muitas situações e, no caso de Cavaco Silva, este decidiu pedir a César das Neves que equacionasse o problema – uma ideia inteligente.
O que o capítulo escrito por JCN diz, em síntese, é isto: OK, o corpo deste livro é keynesiano, mas eu agora vou falar-vos de um outro paradigma, o neoclássico. Apresenta então uma curta excursão pela história do pensamento económico, partindo dos clássicos, passando à “revolução keynesiana” (sic entre aspas), depois à síntese neoclássica, depois aos monetaristas e finalmente à revolução clássica (sic sem aspas): Arrow, Debreu, Lucas, etç. João César das Neves conclui o seu capítulo com uma parábola heliocêntrica: quando surgiu o modelo de Copérnico, apesar de ser mais avançado do que o de Ptolomeu, em termos práticos, para cálculo da posição dos planetas, dava resultados inferiores. Moral da história: os keynesianos podem ter, ainda, um instrumental que para cálculo prático é mais eficiente, mas o modelo neoclássico é superior e acabará por prevalecer. Portanto, estudem as equações do Professor Cavaco Silva, apliquem-nas, mas esqueçam a teoria subjacente.
Tudo muito interessante, mas que faz desta obra o mais esquizofrénico livro de teoria económica.
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8 comentários:
Meu caro J.A.,
Penso que o adjectivo que escolheu para o título deste seu POSTal não é adequado porque é a visão que V. traça da evolução da teoria económica que me parece desajustada.
Aquilo com que hoje nos confrontamos são modelos distintos do comportamento agregado que se aplicam cada um a momentos distintos da análise que se pretende da economia no seu todo. O que é que eu quero dizer com isto?
Que quando procuramos estudar a riqueza ou a pobreza das nações (i.e. de geração para geração) usamos os modelos ditos de crescimento. Que quando procuramos estudar os solavancos das conjunturas económicas (i.e. os médios prazos) usamos os modelos ditos neoclássicos cum ciclos reais cum expectativas racionais. Que quando procuramos estudar os prazos (mais curtos) que não são suficientes para permitir o ajustamento integral de todos os mercados, usamos os modelos ditos neokeynesianos ou de desequilíbrio. E que quando procuramos estudar o dia-a-dia da economia em que só alguns mercados conseguem ajustar-se por completo, usamos os modelos financeiros dos preços de arbitragem ou o CAPM e as suas aplicações aos mercados financeiros.
Em suma: na minha visão, o que este livro parece ter (porque só conheço a versão original) são duas explicações complementares para dois prazos distintos do estudo da economia agregada.
Obrigado.
F
Eu concordo que existe muito de esquizofrénico na teoria económica actual, embora esta ocorrência de várias teorias válidas, com dificuldade em se articular entre si, seja uma situação vulgar noutras áreas, como a Física, onde anda toda a gente à procura duma Teoria Geral (ou Teoria de Tudo, como também, modestamente, lhe chamam).
Igual esquizofrenia existe ao nível das políticas económicas, com o discurso neo-classíco a dominar e os orçamentos a crescer e a deficitar. Foi por causa disto que um economista (creio que foi o Hirshman) disse que o reaganomics era um keynesianismo de pernas para o ar.
Os meus agradecimentos aos vossos comentários.
Caro F: as duas "visões", com alguma boa vontade, poderiam ser consideradas como complementares; mas é o próprio João César das Neves que o não considera assim; em vários escritos descreve o keynesianismo como um erro; num seminário onde se debatia se se devia começar primeiro pela micro ou pela macro, JCN disse que ele ensinava aos alunos que não havia sequer macroeconomia (apenas análise agregada...)
A esquizofrenia, no livro, surge das posições conhecidas dos dois professores, mas JCN torneia habilmente esta contradição com a tal metáfora heliocêntrica. Eu interpreto assim o conselho final dele: estudem já o livrinho antes que comece a cheiral mal.
Por lapso, ao tentar apagar um comentário meu, apaguei um de Luís Aguiar-Conraria, cujo conteúdo era o seguinte:
"Será a economia uma ciência esquizofrénica? Não me repugna esta caracterização. "
As minhas desculpas; ficou a dever-se à minha pouca experiência nestas coisas.
Por lapso (e pela segunda vez!) ao tentar apagar um texto meu, apaguei um outro post, desta vez o de Luis Gaspar. O conteúdo era o seguinte:
"Acho este blog uma das melhores ideias dos ultimos tempos. Parabens, e obrigado por me terem adicionado. Quanto ao tema em debate, eu tambem (como o krugman disse, somos todos...) sou keynesiano. Estudei na nova e quando fui aluno do Prof. Cavaco tambem tive de ler o livrinho verde referido, que, para mim, representa o que pior pode haver no neo-keynesianismo: crenca quase patetica no desequilibrio geral, com tanta ou mais veemencia que a crenca num equilibrio geral. Ora se um equilibrio geral nao pode existir tal como previsto po Walras e muito menos pode ser estudado analiticamente, seguramente que o desequilibrio keynesiano nao pode nunca ser estudado como um equilibrio, ou entrariamos num paradoxo. E isso que o Prof. Cavaco faz: debita equacoes facilitistas, sem as levar a refutacao econometrica ou sequer a uma analise do que melhor se faz nessas mesmas areas. De qualquer forma, a Economia Publica sera sempre uma colonia da Economia, e nao um verdadeiro estudo da questao. Parabens de novo pelo blog, que sera roxo no elasticidade."
Mais um avez as minhas desculpas.
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