sábado, outubro 22, 2005

A ciência igualitária

Também eu andei convencido de que a designação de "ciência deprimente", ou "ciência triste"[1] para a Economia deriva de, aparentemente, ela originar sempre notícias ou previsões pessimistas. A explicação corrente em muitos manuais de Economia é que a expressão foi criada por Thomas Carlyle, numa reacção às previsões pessimistas de Malthus, relativas ao crescimento da população.

Afinal, e apesar de ter sido efectivamente Carlyle o autor da expressão, a explicação é muito diferente, como se pode ver, por exemplo, no livro de David M. Levy, "How the Dismal Science Got Its Name: Classical Economics and the Ur-Text of Racial Politics". Com a sua promessa de um mecanismo regulador - a "mão invisível" - que permitiria assegurar o bem comum, mesmo se as intenções dos indivíduos eram egoístas, a Economia Política mostrava ser desnecessário o sistema hierárquico esclavagista, onde um tipo de homens (os "brancos") julgava ter a obrigação de tomar conta de todos os outros.

Ou seja: a Economia era profundamente optimista quanto à possibilidade de um mundo mais igualitário. Mas isso eram "más notícias" para os defensores do sistema esclavagista. Para eles, de facto, a Economia era uma "ciência deprimente". Eis algumas palavras de apresentação do livro, traduzidas do site da University of Michigan Press:
«É vulgarmente aceite que os "sábios" da era vitoriana criticaram a Economia clássica de uma perspectiva humanística, ou igualitária, designando-a como "a ciência deprimente" [ the dismal science ] e que esta crítica é relevante para o debate actual acerca da sociedade de mercado. David M. Levy mostra no seu livro que essas asserções são simplesmente falsas: a Economia Política foi caracterizada como "deprimente" porque Carlyle, Ruskin e Dickens ficaram horrorizados perante a ideia de que o sistema esclavagista seria substituído por um sistema que permitia a todos os indivíduos escolher o seu próprio caminho na vida. Achavam que, no mínimo, "nós" os brancos deveríamos dirigir a vida "deles", os de cor. Os economistas desse tempo, por outro lado, argumentaram que as pessoas de cor deveriam era ser protegidas pela lei. E esta é que é a origem do apodo "ciência deprimente".

«Uma surpreendente imagem de 1893, que é reproduzida na capa do livro, mostra Ruskin a matar alguém que aparenta não ser um "branco". Um olhar atento revela que a vítima está a ler "The Dismal Science" [ver nota 2]. Levy analisa esta imagem e também o texto de Carlyle "Occasional Discourse on the Negro Question" e a subsequente resposta de Mill, mostrando que se tratam de documentos centrais para a economia clássica britânica.

«As ideias igualitárias de Adam Smith são explicadas e contrastadas com a alternativa hierárquica proposta por Carlyle. Levy também examina as representações visuais deste debate e fornece uma apresentação esclarecedora da "cataláxia" smithiana, a ciência das trocas, comparando-a com os fundamentos da moderna economia neoclássica.»

in University of Michigan Press

Na Internet encontra-se acessível o livro de David M. Levy em ficheiros correspondentes aos 3 capítulos: "1. Two Sciences in Collision: The Dismal and the Gay", "2. Market Order or Hierarchy?" e "3. The Katallactic Moment". Também se pode aceder ao texto de Carlyle: "Occasional Discourse on the Negro Question" e à resposta de John Stuart Mill: "The Negro Question". Análises deste debate podem ser encontradas aqui e aqui. O texto de Carlyle inclui o seguinte parágrafo, carregado de ironia, onde usa pela primeira vez a expressão "dismal science":
«[...] Na realidade, meus filantrópicos amigos, a filantropia de Exeter Hall é maravilhosa. E a ciência social - não uma "ciência alegre", mas sim lamentável - que encontra os segredos do Universo na "oferta e procura" e reduz o papel dos governantes humanos ao de deixarem os homens sozinhos, também ela é maravilhosa. Não é uma "ciência alegre", pois, como alguns apregoam. É uma ciência aborrecida, desolada, e mesmo abjecta e perturbante: aquilo a que poderíamos designar como "ciência deprimente". Se a filantropia de Exeter Hall e a Ciência Deprimente, conduzidas por uma qualquer sagrada causa de emancipação dos negros, se apaixonassem e casassem, dariam origem a progénitos e prodígios: loucos de cor escura, abortos inomináveis, mostruosidades com cauda - tais como o mundo jamais viu!» [3].

Thomas Carlyle
"Occasional Discourse on the Negro Question"

Textos relacionados:
  • "Post Ricardian British Economics, 1830-1870"
  • "Thomas Carlyle, 'The Dismal Science', and the Contemporary Political Economy of Slavery"
  • "John Stuart Mill: a Biography"

    Notas:
    [1] A tradução de "dismal science" por "ciência triste" é a única que tenho lido ou ouvido em português, mas creio que o adjectivo inglês dismal é melhor traduzido por "deprimente", e é este que eu habitualmente uso.

    [2] A capa do livro de David Levy reproduz o desenho caricatural de uma outra publicação, de 1893, com excertos de ensaios de John Ruskin, um crítico do capitalismo, editados pela empresa de tabaco "Cope Brothers". Ruskin, montado num cavalo alado, derruba uma figura grotesca que segura na mão um saco onde estão escritas as iniciais L.S.D. (libras, xelins e pence, moedas da época) e "The Wealth of Nations", título da obra de Adam Smith; caído ao pé da figura encontra-se um livro com o título: "The Dismal Science". A personagem derrubada por Ruskin está vestida de modo pomposo, com casaco de abas de grilo, de tal forma desenhado que parece ter uma cauda. A analogia é evidente: trata-se de um ser inferior (um negro?) e ganancioso, que se pretende fazer passar por "superior" e "civilizado", sob a influência da Economia Política. Ver imagem ampliada aqui.

    [3] O Exeter Hall, edifício construído para sede e local de reunião de instituições religiosas e caritativas, encontrava-se fortemente associado ao anglicanismo e às campanhas anti-esclavagistas. As duas correntes cujo "casamento" Carlyle tanto temia, opunham-se ambas à escravatura, mas por motivos diversos. Os economistas consideravam que todos os indivíduos possuíam a mesma natureza humana básica e que, para a análise económica, as questões raciais eram indiferentes. Os anglicanos consideravam todos os indivíduos como irmãos e irmãs, originários do mesmo casal primordial, Adão e Eva. Mais informações sobre o edifício encontram-se aqui.

    url: http://puraeconomia.blogspot.com/2005/10/cincia-igualitria.html
  • Sem comentários: