terça-feira, novembro 23, 2004

A moral da história





A edição de Dezembro de 2003 da revista "Economia Global e Gestão", do ISCTE, inclui o interessante artigo do Professor Mário Murteira, "From labour economics to knowledge economics: A vision of the second half of the 20th Century". Suponho que se trata do mesmo texto da lição de jubilação que teve lugar no dia 21 de Outubro de 2004: "Da Economia do Trabalho à Economia do Conhecimento: Uma Visão da Segunda Metade do Século XX".

No texto da revista o Professor coloca a si próprio a seguinte questão: "afinal, qual é a moral da história ?". Trata-se de uma avaliação da Economia do Trabalho ao longo dos últimos 50 anos. Trata-se igualmente de uma avaliação pessoal, atendendo a que a vida profissional de Mário Murteira foi dedicada ao ensino desta teoria, numa óptica marxista. "Nos anos 50 e 60 a Economia do trabalho era um assunto de crescente importância nos EUA e Europa (...) 40 anos depois é a 'economia do conhecimento' que está na moda e o termo 'trabalho' parece ter-se tornado obsoleto".(...) "o que aconteceu ao trabalho e às "classes trabalhadoras" no chamado Primeiro Mundo ?"

Com o colapso das economias inspiradas nas teorias marxistas e o seu descrédito académico, justifica-se a pergunta, mas temos de reconhecer a coragem e a transparência com que Mário Murteira aborda a questão, de acordo com a frontalidade e honestidade intelectual que o caracterizam.

Percorrendo a história do pensamento económico deste meio século, recorda as investigações de Paul Samuelson, que mostraram que o conceito marxista do valor não poderia ser utilizado como base para a explicação do mecanismo de preços na economia de mercado.

Refere depois o modelo de Feldman-Mahalanobis, que supostamente fundamentava as opções da economia soviética e justificava o investimento em bens de capital, com sacrifício dos bens de consumo. M. Murteira diz que este modelo foi um caso extremo, quase até uma caricatura, do modelo de crescimento económico através do investimento em equipamento incorporando o progresso técnico - modelo aquele que foi divulgado em Portugal precisamente pelo professor. A propósito, cita a declaração de Ferreira Dias (o 'desenvolvimentista' do regime salazarista) de que "um país sem uma siderurgia, não é um país, é uma horta"; atendendo à ideologia de Ferreira Dias, Mário Murteira deveria ter desconfiado...)

O caminho da economia, no entanto, não veio confirmar a importância do investimento nas tais "industrias industrializantes" - no fim do século era o 'conhecimento' que se tinha tornado no factor estratégico para o desenvolvimento. A mudança da 'economia do trabalho' para a 'economia do conhecimento' é designada pelo Professor como "a grande transformação do sistema capitalista".

Para o final o artigo Mário Murteira passa a navegar em águas mais ideológicas. A certo ponto recupera a lei dos mercados, de J.B. Say ("a oferta cria a sua própria procura") para lhe dar uma outra interpretação: as necessidades dos consumidores são estimuladas pelas próprias empresas. E conclui que, a esta luz, teremos de questionar a "soberania do consumidor" que supostamente orienta o mercado. E apela à metáfora de Dr. Jeckyll e Mr. Hyde (que, no livro de Huxley, é um especialista em Marketing, manipulador dos gostos e preferências individuais em favor do seu patrão) para caracterizar a economia actual.

Refere depois o paradoxo deste desenvolvimento se situar apenas numa pequena parte do mundo, cita a revista Forbes ("é mais fácil ser um bilionário na América de hoje do que na de 1950") e reconhece que "a globalização assenta mais na esfera do capital financeiro do que na esfera do conhecimento ou do capital humano". e conclui:
"Naturalmente, tenho as minhas preferências. Mas não sou daqueles que confundem os desejos com a realidade. E muito menos dos que reproduzem - com maior ou menor convicção e ingenuidade analítica, a ideologia que suporta o mercado global."

"Não obstante, temos de admitir que esta segunda metade do século XX, com toda a sua violência e injustiça, foi muito mais positiva do que a primeira - período da sinistra "guerra dos trinta anos" entre 1914 e 1945, dos milhões de desempregados da Grande Depressão, do nazismo, fascismo e estalinismo, bem como da invenção e uso da bomba atómica. Esta comparação traz-nos algum conforto e alimenta a esperança de que necessitamos. Se ainda não compreendemos o progresso como "feliz fatalidade", ou seja, como inevitabilidade histórica, podemos considerá-lo como um possível e desejável futuro que depende apenas de nós, humanos, para acontecer".
Eis a "moral da história", segundo Mário Murteira.


Notas:
- As citações foram traduzidas por mim do inglês;
- O professor Mário Murteira é autor de uma interessante colectânea de artigos, com o título Economista Acidental, onde faz um percurso histórico pela sua vida académica e profissional (disponibizados online na Janela na Web).

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