quarta-feira, novembro 10, 2004

Antes do degelo


Escreveu Agustina Bessa-Luís:
"Não é o amor que interessa aos homens, mas as crenças naturais na capacidade de sentir. Isso explica como pessoas de tão elevada linhagem mental, como Rousseau, se deixasse manobrar pela sua governanta, que era analfabeta e o meteu numa série de intrigas vergonhosas com os amigos. Ela decerto desencadeou funções do seu cérebro que não são as que determinam o conhecimento. Funções do inconsciente em que o tempo não tem medida e é intemporal. É possível que as mulheres exerçam uma influência para além de qualquer razão nesse inconsciente que é a única barreira perante a morte."
Esta senhora, já se sabe, com o seu arzinho de camponesa inofensiva, avança com um bisturi em cada mão e vai revolvendo as entranhas do ser humano, até um ponto em que os despojos ficam irreconhecíveis - ou em que nós já não os queremos reconhecer.

Este discurso agustiniano cola muito mal ao paradigma dominante de que os homens e as mulheres são (ou devem ser) iguais, apesar de todas as evidências em contrário. Parece remeter para um passado próximo em que a mulher era, em termos económicos, a escrava do homem, a empregada do homem - os livros estão repletos de situações desse tipo. Mas a análise sibilina parece alcançar um território mais longínquo, tão longínquo que mal distinguimos o que supostamente nos é apontado, embora queiramos muito ver o que é na realidade.

"Antes do degelo" significa o quê? Antes da idade adulta? Antes da civilização? Antes da hominização? Antes do conhecimento?

[Antes do Degelo, Agustina Bessa-Luís, 2004 (página 221)]

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