quarta-feira, novembro 17, 2004

Paraíso perdido


Serão os Planos Directores Municipais uma forma de planeamento verdadeiramente soviético, como assegura o Blasfémias ?

Bem, a Carta de Atenas estava de facto imbuída desse optimismo racionalista que julgava poder vir a planear a cidade ideal, com as diferentes funções do viver humano todas muito bem organizadinhas em zonas, separadas por canteiros com florinhas, digamos assim.

O certo é que, se queremos ir almoçar um bom prato, com um amigo ou uma namorada (que até pode ser a legítima esposa) a um sítio inspirador, não escolhemos essas cidades ou esses bairros contruídos de acordo (?) com a racionalidade modernaça. Preferimos antes aquelas zonas históricas arrumadas à maneira medieval, casinhas multiformes, ruelas irregulares, etç. Não há coisa mais bonita que aquele estrangulamento em Alfama que obriga os trilhos dos eléctricos a enlaçarem-se à moda da espiral do ADN.

Pois, tudo isso é verdade. Mas poderemos nós voltar às regras medievais para construír as nossas cidades? Impossível: as mesmas "forças de mercado" que tanto assustam as almas poéticas fariam bem pior se não existissem esses famigerados PDMs racionalistas, ou soviéticos, ou o que lhes quiserem chamar.

Podemos talvez socorrer-nos da metáfora da expulsão do Paraíso: sim, houve um tempo (snif! snif!) em que podíamos construir as cidades organicamente, colina acima, colina abaixo, de acordo com a inspiração de cada um; mas, uma vez expulsos desse paraíso, já não há regresso. Aspirámos ao conhecimento, foi-nos concedido - e lá se foi a inocência. Resta-nos o remorso e a culpa, a confissão e o arrependimento.

Ou melhor: resta-nos seguir em frente, admitir a complexidade, lidar com ela sabendo que é uma fera indomável e perigosa, negociar os interesses sabendo que não existe uma plataforma estável de onde brote a justiça, a ética e a verdade, chame-se ela racionalidade, ou interesse público, ou sustentabilidade, ou ecologia.

Notas:
1) Os economistas também tiveram a sua deriva racionalista, lá para meados do ido século, tendo concluído que haviam descoberto as leis económicas fundamentais, domado a inflação, descoberto a cura para o desemprego, etç (ilusão que não atacou só os soviéticos...). Foi tão bonito. E os médicos iam curar todas as doenças, os políticos evitar todas as guerras (a famosa détante, lembram-se?). Depois, logicamente, vieram os hippies e disseram: bem, se é assim, já não precisamos mais de trabalhar nem de tomar banho, e estragaram a festa dos papás
2) A imagem de cima foi retirada deste texto de 1902, da autoria de Ebenezer Howard: Garden Cities of Tomorrow.

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