terça-feira, outubro 26, 2004

Neuroeconomia: o regresso do "animal spirits"


O mecanismo do marcador somático parece coerente com a teoria da racionalidade limitada. Em Economia, o pressuposto das decisões racionais levanta dois problemas importantes:
- os agentes económicos não podem dispor de toda a informação relevante e

- ainda que dispusessem, a quantidade de informação seria tão grande que o cérebro não teria capacidade para a processar.
Pode ser que o trilho adaptativo da racionalidade limitada seja percorrido com a ajuda da memória emocional proposta por António Damásio. No seu livro "O Erro de Descartes" é descrita uma experiência laboratorial com humanos, o "jogo de cartas", que o próprio Damásio admite ser uma simulação da actividade económica. Os pacientes com disfunções no sistema emocional não conseguem "adivinhar" as regras do jogo, ao contrário dos que não têm esse problema, os quais acabam por "adivinhar" as regras de um jogo aparentemente caótico, onde os impulsos emocionais de "ganhar" ou "perder" ajudam a perceber a racionalidade escondida.

Peter Drucker, nas suas memórias, apresenta um exemplo muito curioso dum velho "capitão da indústria" que contraria a análise da sua equipa de gestores, favoráveis a um investimento financeiro "infalível", que tinha inclusivamente uma espécie de aval do Banco de Inglaterra. Resultado: os gestores estavam enganados. Questionado sobre o que o teria levado a "descobrir" a verdade, o experiente homem terá dito qualquer coisa como "desconfiei porque o tipo tinha respostas para tudo". Este é o tipo de comportamento que costumamos rotular como "intuitivo", pelos vistos erradamente: em lugar da intuição está, provavelmente, o mecanismo do marcador somático a ajudar à tomada de decisão.

As "funções de surpresa potencial" de George Shackle também poderiam ser explicadas pelo marcador somático. É curioso como estas "intuições", desprezadas pelos economistas por causa da sua aparência pouco científica (desprezo que, em si mesmo, traduz uma atitude pouco científica) parecem agora ser mais "legitimas" a partir de experiências laboratoriais controladas. Porém - suprema ironia - é bem provável que tudo isto venha dar razão àqueles que construiram modelos matemáticos do comportamento económico "não realistas". A ciência tem destas coisas. na altura da sua formulação, não havia modelo mais "afastado da realidade" do que a teoria da atracção universal de Newton: era "evidente" que não havia nenhum meio de transmitir a informação necessária à atracção, nenhum cabo a ligar os planetas, e no entanto... Newton, de resto, estava consciente desse "ponto fraco".

A Neuroeconomia apresenta-se assim como um caminho bastante promissor. Quem sabe se, depois de se terem tornados "matemáticos", não terão os economistas de se especializar agora em Medicina...

Um bom texto sobre este assunto: Implications of the Affect Heuristic for Behavioral Economics de Paul Slovic (2002)

Quem também prece ganhar pontos com estes desenvolvimentos são as teorias darwinianas: o facto do organismo utilizar como elemento relevante do mecanismo racional um outro mecanismo "inferior" (as emoções secundárias, que parece que partilhamos com outros mamíferos...), encaixa bem no modelo evolutivo em que órgãos de uma determinada fase da evolução são adaptados para o funcionamento de órgãos que surgem posteriormente no processo evolutivo.

Razão tinha o Keynes com o seu "animal spirits". Seria também intuição do Lord?
"Even apart from the instability due to speculation, there is the instability due to the characteristic of human nature that a large proportion of our positive activities depend on spontaneous optimism rather than mathematical expectations, whether moral or hedonistic or economic. Most, probably, of our decisions to do something positive, the full consequences of which will be drawn out over many days to come, can only be taken as the result of animal spirits - a spontaneous urge to action rather than inaction, and not as the outcome of a weighted average of quantitative benefits multiplied by quantitative probabilities."


"... human decisions affecting the future, whether personal or political or economic, cannot depend on strict mathematical expectation, since the basis for making such calculations does not exist ... it is our innate urge to activity that makes the wheel go around ..."

Keynes, Teoria Geral

Sendo muito bem concebido (ao longo de milhões de anos) o mecanismo não é infalível. Além disso foi desenvolvido para uma realidade envolvente diversa daquela que construimos com a sociedade mercantil. Provavelmente daremos um grande avanço no conhecimento dos mecanismos económicos e com isso ficaremos ainda mais ignorantes, porque mais conscientes da nossa ignorância.