sábado, janeiro 20, 2007


Publicado na Revista DiaD, edição de 19 de Janeiro de 2007 do jornal Público

     O enquadramento histórico do keynesianismo é usualmente feito pela referência à depressão económica mundial dos anos 1930: a persistência da crise e do desemprego teria sido o móbil de Lord Keynes, bem como a prova, para os seus seguidores, de que a “mão invisível”, só por si, não conduziria automaticamente à recuperação da crise. Mas o keynesianismo estava bem acompanhado e foi apenas mais uma das muitas ilusões do século XX, tais como a “Revolução Verde”, ou a convicção de que mais tarde ou mais cedo se acabaria por descobrir a cura de todas as doenças, ou de que os problemas da vida urbana desapareceriam com as novas “cidades jardim”, ou ainda de que a tecnologia nuclear proporcionaria energia barata e ilimitada.

     Para a auto-estima dos economistas o keynesianismo também fazia maravilhas: quem é que se podia contentar com uma profissão cuja principal receita fosse a de aconselhar que, perante os problemas, não se fizesse nada, deixando os mercados corrigir tudo automaticamente? Pelo contrário, a possibilidade de se codificar os segredos mais profundos do universo económico em pequenas fórmulas matemáticas – como fizera Einstein na Física – prometia elevar a Economia e os economistas ao pedestal da glória.
     Não se trataram de ilusões sem fundamento: houve de facto grandes avanços na compreensão de muitos fenómenos pelas ciências naturais e humanas e a vida social progrediu com base nesses novos conhecimentos. O erro dos humanos parece ter estado na arrogância com que encararam as suas capacidades. Uma vez que a “ciência” parecia ter sido a responsável pela “morte” de Deus (que deixara de “governar” o dia-a-dia) fazia sentido que a tribo dos cientistas se encarregasse de ocupar o trono vago. A “Economia” bíblica e a “Economia Científica” pareciam estar a fundir-se numa verdadeira “síntese” ecuménica.
     No caso português esse ecumenismo estendia-se ao ensino universitário da Economia, operando um pequeno milagre: a convergência entre o paternalismo económico salazarista e a defesa do planeamento estatal marxista. Quem entrasse no Instituto Superior de Economia no final dos anos 60 estranharia que pudessem ali leccionar tantos professores reconhecidamente marxistas, tal como estranharia o zelo com ensinavam a cartilha keynesiana.
     Em 1976, recém chegado do doutoramento em Inglaterra, o professor Aníbal Cavaco Silva ingressou na escola onde se licenciara para dirigir a cadeira de Economia Pública. Para tal publicou o manual “Política Orçamental e Estabilização Económica”, um livro essencialmente keynesiano, basicamente instrumental, com desenvolvimento matemático dos diversos multiplicadores para formulação de políticas orçamentais de estabilização: a denominada “sintonia fina”.
     Cavaco Silva passou depois para a Universidade Nova e o livro, com desenvolvimentos importantes, conheceu novas edições em 1982 e em 1992, agora com o novo título de “Finanças Públicas e Política Macroeconómica” e com uma importante inovação: a adição de um novo capítulo da autoria do professor João César das Neves.
     Aqui teremos de fazer um compasso de espera para respirar fundo: o professor João César das Neves co-autor de um livro keynesiano? E o Céu não trovejou? E a Terra não tremeu?
     Na realidade, o que o capítulo cesariano faz é um pequeno milagre ecuménico, “estender a validade” do condenado keynesianismo, salvando assim a honra do convento. A solução é engenhosa e recorre a uma parábola heliocêntrica, que se pode resumir no seguinte: quando surgiu a teoria de Copérnico, apesar de ser mais avançada do que a de Ptolomeu, o certo é que em termos práticos e para cálculo da posição dos planetas dava resultados inferiores. Por isso, durante algum tempo ainda se usaram as velhas tabelas heliocêntricas. Moral da história: os keynesianos podem ter, ainda, um instrumental que para cálculo prático é mais eficaz, mas o modelo neoclássico é que acabará por prevalecer. É caso para perguntar: trata-se de dupla personalidade ou ecumenismo na Economia?

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